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Deixar a meio

Nem sei bem se ficou a meio ou se ficou completamente por fazer. Ou talvez o tenha começado a fazer antes de tempo, que é por vezes uma das minhas falhas – antecipar – para tentar sofrer menos. Imaginar tudo na pior versão possível para que, quando se der não ser tão mau. Os cenários híper catastróficos que traço são sempre desgraças muito mais grandiosas e espetaculares que a realidade, felizmente. Não me ajudam a prevenir o inevitável mas ajudam-me a registar memórias de boa qualidade com muita precisão. Como faço tudo isto de forma consciente, sei o que estou a registar e porquê, por isso a informação que armazeno tem muitos detalhes e é construída com uma visão 360, e é simultaneamente registada de dentro para fora e de fora para dentro. De que vale uma boa memória se não conseguirmos sentir o que sentimos naquele momento, sempre que a revisitamos?

Faz hoje 4 anos que morreu a minha avó Rosa. Podia começar com aquelas bonitas contagens de horas, minutos e segundos que se passaram desde esse dia até hoje mas na verdade, parece que passou muito tempo e parece que nem passou tempo nenhum. É complicado eu sei, tem uma explicação. Dificilmente penso na minha avó no passado apesar de falar nela no passado, exercício que só consegui realizar este ano, não por negação mas por continuar a sentir que partilhamos o mesmo presente. Foram muitos anos a usufruir da companhia da minha avó, ela continua muito viva em tudo o que penso e faço. Obviamente que sei que ela já não está aqui mas mesmo assim, eu sinto-a sempre perto. Não, também não a “carrego comigo” (para aqueles que já estão a imaginar – coitada da miúda não consegue superar a perda!) andamos lado a lado, como sempre fizemos.

Talvez por isso tenha começado por dizer que ficou a meio. O luto tem de ter um principio, um meio e um fim como as histórias, caso contrário não faz sentido é quase como deixar um livro a meio que depois se pega, passado um bom tempo, temos de reiniciar porque já não estamos a perceber nada do encadeamento. Reiniciar é voltar ao dia 7 janeiro 2017, 2018, 2019 e 2020. Nunca será como foi em 2017 apesar de se voltar a sentir a mesma tristeza profunda numa versão mais suave. 

Não chorei o suficiente, não me deixei abater o suficiente e não sofri o suficiente, seja lá o que isso for.

Parece que ficou incompleto o processo e porventura nem fará sentido estar a recuperar de onde quer que tenha ficado. A vida seguiu o seu rumo impiedosamente, não se volta para trás nem para o bem nem para o mal, por isso mais vale aceitar que foi o que foi e pronto. Não vai mudar nada.

Possivelmente não sofri o suficiente porque na proporção correta das coisas vividas com a minha avó, os muitos anos que esteve comigo e tudo o que vivemos é maior que a sua morte. É uma ausência que se acentua e não se recupera é verdade, só que nesta fase da minha vida a ausência ainda não representa o suficiente para me doer assim tanto. A minha vida com a minha avó presente tem um tempo maior, em praticamente todas as memórias ela está lá e estará. Talvez não tenha chorado o suficiente por saber que tive muita sorte e que a gratidão que sinto para com a minha avó é maior que a sua morte física.

Relembro-a hoje na inevitabilidade da data.

Na realidade relembro-a a todos os dias porque no fundo ela vive sempre em mim, todos os dias no resto do ano e para sempre.  



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